segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O PROBLEMA DO JESUS HISTÓRICO


OBJEÇÕES À PESQUISA DO JESUS HISTÓRICO[1]

Prof.D.F.Izidro

Algumas Notas Preliminares


l  Por muitas vezes, a pesquisa do Jesus Histórico foi objeto de grande ceticismo por parte de estudiosos, chegando ao clímax de se negar até a própria historicidade de Jesus.

l Exemplificando isso, Bruno Bauer (1809-1882),antigo professor de teologia de Bonn, considerava o Evangelho mais antigo uma obra de arte literária,onde história não era descrita, mas, sim, produzida.[2]

l  Albert Kalthoff (1850-1906), o pastor de Bremen, via Jesus como resultado das necessidades religiosas de um movimento social que entrara em contato com a expectativa messiânica judaica.[3]

l  O professor de filosofia de Karlsruhe, Arthur Drews, considerava Jesus como concretização de um mito que já existia antes do cristianismo.[4]

l  Há três motivos para esse ceticismo, os quais também atuam mesmo onde a historicidade de Jesus não é mais questionada: Jesus é compreendido como (a) fruto de fantasia literária,(b)de necessidade sociais ou (c)de tradições míticas.

l  Esse ceticismo histórico se mostra muitas vezes com grande pathos científico e ético, tornando seus partidários críticos apologistas governados por seus desejos. Na discussão sobre o Jesus Histórico, nenhuma postura está isenta de desejos e interesses, nem mesmo a postura cética!

l  Fora da teologia, o ceticismo pretende tirar a legitimidade do cristianismo; já dentro dos círculos teológicos o mesmo é usado para legitimá-lo.

l  Alguém pode dizer: visto que só temos fontes sobre Jesus matizadas pela fé, uma abordagem de Jesus determinada pela fé é então a única legítima; a única alternativa é a descrença. Contudo, o trabalho histórico criterioso deveria excluir tal pressão imposta por uma única alternativa – por amor à liberdade de poder lidar objetivamente com Jesus sem ter de legitimar fé ou descrença pessoais com os resultados da pesquisa.

l  Mas todo tratamento científico de Jesus deve começar com o problema da adequada avaliação histórica das fontes (a maioria delas cristãs) que trazem relatos sobre Jesus.

l  Para apresentar com precisão a problemática metodológica, e as restrições do ceticismo histórico, oferecemos treze objeções do ceticismo histórico que, no seu conjunto, consideram impossível qualquer avaliação histórica das fontes cristãs existentes.


     1. O “silêncio” das fontes não-cristãs


         Objeção: As fontes não-cristãs contemporâneas silenciam amplamente sobre Jesus. Mesmo em pontos em que esperaríamos uma nota sobre ele, não encontramos nenhum relato a seu respeito.

l  Fílon de Alenxadria (morte 42/50 d.C.), contemporâneo de Jesus, narra sobre Pilatos:

“Aqui poderíamos relatar sua corrupção, violência, roubos, maus-tratos, ofensas, execuções sem processos, assim como sobre sua crueldade interminável e intragável” ( LegGai,302).Sobre Jesus, porém, não há nada.[5]

l  Justo de Tiberíades, contemporâneo de Flávio Josefo, redigiu uma “crônica dos reis judeus” e uma “história da guerra judaica”. Segundo Fócio de Constantinopla (c.820-886 d.C.), que conhecia esta obra hoje perdida, ele também deixou de mencionar Jesus (Fócio,cód.13).

Contra-argumentos:

1.1.Fontes antigas silenciam sobre muitas pessoas de cuja historicidade não se pode duvidar.

l  João Batista é citado em Josefo (Ant 18.116-119) e em textos mandeus, mas não em Fílon, Paulo ou escritos rabínicos.

l  Paulo de Tarso é testemunhado por cartas autênticas, mas não é citado por Josefo nem por outros autores não-cristãos.

l  O Mestre da Justiça só é conhecido dos próprios escritos de Qumran, mas não há nenhuma notícia sobre ele nos antigos relatos sobre os essênios que chegaram até nós (Josefo, Fílon, Plínio Velho).

l  Rabbi Hillel,o fundador  da tradição da escola dos hillelitas, nunca é citado por Josefo, apesar de este se confessar adepto do farisaísmo.

l  Bar Kochba, o líder messiânico da guerra judaica contra os romanos de 132-135 d.C., é relegado ao silêncio por Díon Cássio em sua narrativa sobre  essa revolta.

1.2.As menções a Jesus em historiadores antigos rebatem as dúvidas sobre sua historicidade.

l  As notícias sobre Jesus em autores judeus e pagãos apresentadas no § 3 – especialmente em Josefo, na carta de Sarapião e em Tácito – mostram que na Antiguidade a historicidade de Jesus era pressuposta, e com razão, como demonstram duas observações  sobre as fontes supracitadas:

l  As informações sobre Jesus são independentes entre si. Três autores, de contextos distintos, utilizam informações sobre Jesus de maneira autônoma: um aristocrata e historiador judeu (Josefo), um filósofo sírio (Serapião), e um homem de estado romano e historiador (Tácito).

l  Todos os três sabem da execução de Jesus, ainda que de formas diferentes: Tácito responsabiliza Pôncio Pilatos, Mara bar Sarapion o povo judeu, o Testimonium Flavianum (provavelmente) uma cooperação entre a aristocracia judaica e o governador romano. A execução foi chocante para qualquer “jesulatria”; como “escândalo”, ela não pode ter sido inventada (Ico.1.18ss,23[6]).


            2.O Cristo “mítico” das cartas de Paulo


            Objeção: Os escritos cristãos mais antigos, as cartas paulinas, apresentam Jesus como um ser quase mítico, cuja existência terrena é apenas um estágio intermediário entre pré-existência e exaltação.

l  Uma vez que os sinóticos são mais recentes que as cartas de Paulo e este mal cita tradições sobre Jesus, surge a suspeita de que no tempo de Paulo ainda não existia grande parte da tradição sobre Jesus.

Contra-argumentos:

2.1.Paulo atesta a existência de algumas tradições sinóticas para os anos 40/50.Como ele as citava explicitamente apenas em ocasiões particulares, ele pode ter conhecido outras tradições sobre Jesus.

l  E ocasiões particulares, Paulo cita os seguintes ditos: a palavra sobre a questão do casamento de ICo.7.10s é resposta a uma consulta dos coríntios; o dito sobre a questão de sobreviver por conta própria em 1Co.9.14 é uma reação à crítica da comunidade coríntia; as palavras da instituição em 1Co.11.23-25 tomam posição no conflito sobre a eucaristia; o texto sobre a parusia em 1Ts.4.16s esclarece um problema comunitário: a morte de cristãos antes da parusia.

l  Tradições de Jesus citadas por Paulo, possivelmente de forma anônima, podem ter acolhido dois mandamentos centrais do “sermão da planície”:

- O mandamento de amor aos inimigos (Lc.6.27-36) em Rm.12.14,17: “Abençoai os que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis. ...não retribuais a ninguém o mal pelo mal.”
- A proibição de julgar (Lc.6.37ss.) em Rm.14.13: “Cessemos, pois, de nos julgar uns aos outros”.

l  Antes de tudo Paulo insistia na crucificação de Jesus (1Co.1.18ss.). Quando introduz as palavras da última ceia com as palavras “na noite em que foi traído...” (1Co.11.23), ele mostra que sabia mais do que escreve sobre a paixão de Jesus e sobre a noite antes da execução e da traição.

2.2.Fatores pessoais – a aparição pascal que ele presenciou e a “concorrência” com os demais apóstolos – levam Paulo a se concentrar na cruz e na ressurreição. O que não significa, portanto, que ele não conhecesse outras tradições cristãs antigas sobre o Jesus terreno, ou que tais tradições já não existissem em seu tempo.

l  Que em Paulo o determinante seja o Cristo “exaltado” é biograficamente compreensível: Cristo lhe apareceu numa visão – A experiência de Paulo foi com o Cristo “exaltado”, não com o Cristo “terreno”. A tensão entre esse ser celestial “exaltado” e o crucificado torna-se o tema básico na cristologia paulina.

l  Visto que Paulo teve de defender seu apostolado contra outros apóstolos que haviam conhecido o Jesus terreno e podiam por isso citar tradições sobre Jesus para fins de legitimação, em 2Co.5.16 ele pode até mesmo descartar em princípio a referência ao Jesus Histórico: ei) kai\ e)gnw/kamen kata\ sa/rka Xristo/n, a)lla nu=n ou)keti ginw/skomen (Se conhecemos o Cristo à maneira humana, agora não o conhecemos mais assim).

2.3.Convicções teológicas impedem Paulo de valorizar o Jesus terreno.O monoteísmo judeu permitia venerar um ser celestial que devesse seu status apenas a Deus – mas não um ser terreno que, com base em suas palavras e ações, tivesse recebido honrarias divinas.

l  No período do cristianismo primitivo, judeus podiam reconhecer seres celestiais ao lado de Deus (p.ex. O “filho do homem”, a sabedoria ou o logos). Para eles era concebível que Deus exaltasse um ser humano (como Henoc) para si. Eles protestavam quando, ao contrário, um ser humano se fazia de divindade (Jo 5.18;10.33) e era adorado no culto (cf.At.12.21-23;14.8-18).

l  Por isso a fé do Paulo judeu concentrava-se na cruz e na ressurreição: Deus exaltou o crucificado para si apenas por sua ação. Tradições que já pareciam envolver as ações e palavras do Jesus terreno com o brilho do exaltado devem ter permanecido alheias a Paulo.


2.4. Razões da história das formas e da história social são responsáveis pela escassez da tradição sobre Jesus em Paulo, pois esta se desvanece em toda a literatura epistolar do cristianismo primitivo.

l  As cartas joaninas provavelmente pressupõem o Evangelho de João, mas não o citam em lugar nenhum: mesmo o mandamento do amor, que tem papel central no Evangelho como kainh\ e)ntolh/ (novo mandamento), não aparece nelas como tradição de Jesus. Do silêncio das cartas joaninas sobre o Jesus joanino não se pode deduzir que não havia tradições sobre Jesus na comunidade joanina. O mesmo se pode dizer do “silêncio” das cartas paulinas.

l  Também o restante da literatura epistolar do cristianismo primitivo, até os Padres Apostólicos, cita, surpreendentemente, poucas tradições sobre Jesus. Possivelmente a radicalidade ética da tradição sinótica não se adequava à vida das comunidades estabelecidas. Havia aqui um limiar sociológico de tradição? A tradição de Jesus se difunde em todo o cristianismo primitivo apenas no quadro de uma narrativa retrospectiva, ou seja, na forma de evangelhos.

3.A imagem não-histórica do Cristo joanino


Objeção: Entre as tradições sinóticas de Jesus e a imagem joanina do Cristo há contradições insuperáveis.
As contradições referem-se, entre outros aspectos, a :
l  Cronologia: segundo o Evangelho de João,Jesus atuou publicamente por três anos (três Páscoas) e foi crucificado antes da festa.Os sinóticos parecem pressupor um ano de atividade pública de Jesus e falam da crucificação na Páscoa.
l  Preexistência: Jesus é no Evangelho de João um ser divino vagando sobre a terra, criador de todas as coisas, até mesmo conhecedor de sua preexistência. Os sinóticos, ao contrário, ignoram a noção de preexistência.
l  O estilo dos discursos de revelação: os longos discursos de revelação com expressões parabólicas iniciadas com “eu sou...” contradizem os ditos e parábolas breves da tradição sinótica.

Contra-argumentos:

3.1.A imagem do Cristo do Evangelho de João é o resultado de um desenvolvimento especial, limitado ao círculo joanino, enquanto o material de tipo sinótico aparece em vários âmbitos de tradição.

l  Tradições com um matiz sinótico podem ser encontradas em várias fontes independentes umas das outras: em Mts,Q,Mc,Lcs,Evangelho de Tomé.

l  As parábolas transmitidas em todos os âmbitos de tradição correspondem umas à outras no conteúdo (cf.,por exemplo: a ovelha perdida – Q; o filho pródigo -Lcs ; e os filhos diferentes -  Mts ).

l  Por conseguinte, os traços especificamente joaninos na figura de Jesus podem ser compreendidos como um “desvio” de uma tradição sobre Jesus amplamente atestada, um desvio presente apenas na tradição joanina (com exceção de Mt.11.27). O valor histórico dos sinóticos deve ser claramente maior que o do Evangelho de João. A tradição de ditos e de narrativas pode ser, neste caso, tratada separadamente.

3.2.O Evangelho de Tomé permite um controle limitado sobre a tradição de ditos sinótica: apesar de também aqui estar em ação uma imagem unilateral de Jesus, a marca sinótica das palavras de Jesus é ainda reconhecível.

l  Também o Evangelho de João traz uma série de ditos de Jesus com marcas sinóticas.[7]

l  Seus longos discursos de revelação, que indicam certa “proximidade gnóstica”, desviam estilisticamente desses ditos curtos.

l  Também no Evangelho de Tomé os ditos curtos com colorido gnóstico diferenciam-se das tradições com marca gnóstica, mas de forma diferente dos longos discursos de revelação do Evangelho de João.

l  Onde ambos os evangelhos próximos da gnose seguem suas tendências “gnósticas” mais intensamente, eles chegam a formas estilísticas distintas; onde correspondem em estilo aos sinóticos, aí eles também apresentam uma concordância estilística. Isso indica que já havia uma tradição de ditos com marca sinótica.

3.3.O Evangelho de João pode ter preservado informações históricas corretas em seus parágrafos narrativos, onde a estilização especificamente joanina da imagem de Jesus não está em ação.

l  Desse modo, por exemplo, a datação da crucificação de Jesus antes da festa da Páscoa concorda com Mc.14.1s.Os sumo sacerdotes e os escribas discutiram sobre o momento da execução de Jesus e dizem: “não durante a festa, para que não haja levante entre o povo” (Mc.14.2).

Às vezes, motivos políticos aparecem mais claramente que nos sinóticos:

l  Jo 6.14s.: expectativas messiânicas são transferidas a Jesus. O povo quer aclamá-lo como basileu/j (rei),mas ele se retira.

l  Jo 11.45-53: a decisão do Sinédrio de executar Jesus é motivada politicamente: “Se o deixarmos continuar assim, todos crerão nele, os romanos intervirão e destruirão tanto o nosso Lugar Santo como a nossa nação” (11.48).

l  Jo 19.12: Pilatos é pressionado pela imputação de deslealdade para com Roma: “Se o soltares não estarás agindo como amigo de César”.

4.A ruptura pascal


l  Objeção: A fé na Páscoa reformulou de tal modo a tradição pré-pascal, que a veneração pós-pascal e a recordação histórica aparecem inseparavelmente mescladas.

l  Não resta dúvida de que os discípulos viram de forma nova a memória pré-pascal de Jesus à luz da experiência da Páscoa: Segundo o Evangelho de João, o Espírito dado na experiência pascal lembra tudo o que Jesus ensinou (Jo14.26). Só depois da Páscoa é que os discípulos entendem as palavras de Jesus (cf.Jo 2.22;12.16).

l  Também nos sinóticos, motivos e afirmações ligados à Páscoa são deslocados de volta para a vida de Jesus nos sinóticos.

1.A história da pesca miraculosa aparece em Jo 21.1-14 (e provavelmente no Evangelho de Pedro) como história pascal; já em Lc.5.1ss.como história de vocação pré-pascal.

2.Numa aparição pascal de Jesus os discípulos temem ter encontrado um “fantasma” (Lc.24.36-43). Mc apresenta o mesmo motivo na caminhada milagrosa sobre o mar, que talvez fosse originalmente uma aparição pascal (Mc.6.45-52).

3.Segundo Rm.1.3s.,Jesus foi reverenciado com autoridade como “Filho de Deus” desde a (ou por causa da) ressurreição dos mortos. Em Mt.11.27 (=Q), ao contrário, o Jesus terreno refere-se a si mesmo como Filho de Deus, ao qual tudo foi dado pelo Pai.

4.Em At.13.33, Sl.2.7 (“tu és meu filho, eu hoje te gerei”) é citado como prova veterotestamentária para a ressurreição. Nos evangelhos, o mesmo versículo da Escritura aparece como voz celestial no batismo (cf.Mc.1.11 par.).

5.A autoridade de perdoar pecados, segundo Jo 20.21,é dada aos discípulos pelo ressuscitado, mas, segundo Mt.18.18,pelo Jesus terreno.

6.Segundo Jo 20.21,o envio dos discípulos é feito pelo ressuscitado: “Como meu pai me enviou, eu vos envio”. Um dito com o mesmo conteúdo figura como palavra do Jesus terreno em Mt.10.40;Mc.9.37b;Lc.10.16.

7.Segundo as histórias da Páscoa, Jesus é um ser que não está limitado a tempo e espaço. Ele atravessa portas fechadas para estar com os discípulos (cf.Jo 20.19ss.). Em Mt.18.20 o Jesus terreno já promete tal onipresença: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei com eles”.

Contra-argumentos:

4.1.Projeções retrospectivas do tempo pós-pascal são também ocasionadas, em parte, por contextos pré-pascais. Ambos podem ser separados ainda hoje.

l  A vocação de Pedro ocorreu, segundo Mc.1.16ss., numa pescaria. Só por isso a narrativa da vocação pôde atrair para si o motivo da “pesca maravilhosa” (Lc.5.1ss.).

l  Certamente Jesus cruzou várias vezes o lago de Genezaré de barco com seus discípulos, entre os quais havia pescadores. Apenas por esse motivo experiências pascais podem ter sido projetadas retrospectivamente na forma da caminhada sobre a água.

l   Jesus já vivenciou em sua vida o perdão dos pecados. O batismo de João acontecia “para o perdão de pecados” (Mc.1.4). A comunidade de Jesus composta por coletores de impostos e pecadores o praticava. Apenas por isso em Mt.18.18 a autoridade para perdoar pecados já poderia ser atribuída ao Jesus terreno.

4.2.Projeções retrospectivas a partir do tempo pós-pascal não conseguiram encobrir e suprimir posicionamentos pré-pascais perante Jesus.

l  A acusação da família de que Jesus estava louco (Mc.3.20ss.) não é certamente uma projeção retrospectiva, dada a grande importância da família de Jesus depois da Páscoa.

l  A acusação de que Jesus seria um comilão e um beberrão, amigo de coletores de impostos e pecadores (Mt.11.19) não pode estar relacionada ao Cristo exaltado.

l  A acusação de que Jesus tinha um pacto com Belzebu só pode estar relacionada com os exorcismos de Jesus (Mt.12.22ss.).

l  O boato de que Jesus seria o Batista redivivus (Mc.6.14) pressupõe que seu nascimento e origem de Nazaré ainda sejam desconhecidos.

l  Sem dúvida, a fé pascal influenciou as tradições sobre Jesus. Essa influência deve, no entanto, ser demonstrada caso a caso, não pode ser afirmada genericamente. A fé na ressurreição não transforma as tradições em uma massa de informações a-históricas. Teimosamente, memórias pré-pascais sobreviveram.

4.3.Projeções retrospectivas a partir do tempo pós-pascal concentram-se especialmente em afirmações sobre a pessoa de Jesus e a compreensão de sua morte. Elas podem, portanto, ser limitadas a pontos particulares e relativizadas pela demonstração de “relíquias” pré-pascais nessas esferas.

l  A fé pós-pascal é introduzida na vida pré-pascal quando Jesus é proclamado nela como “Filho de Deus” (Mc.1.9-11;Mt.11.27;cf.em contrapartida Rm.1.3s.) e é reconhecido como todo-poderoso (Mt.11.27) e onipresente (Mt.18.20).

l  No entanto, elementos pré-pascais continuaram presentes na tradição: Jesus rejeita ser chamado “bom”, pois apenas Deus é bom (Mc.10.18). Ele permite ser batizado para o perdão de pecados (Mc.1.9 junto com 1.4).Nem sempre ele consegue curar (Mc.6.5).

l  O escândalo de sua execução ignominiosa desencadeou interpretações de seu sentido após a Páscoa (como Mc.10.45) e profecias de sofrimento (como Mc.8.31). Mas em Lc.13.34 há ainda a insinuação de que Jesus esperava o apedrejamento como profeta – não a crucifixão como pretendente real.

5.A distância dos evangelhos sinóticos


l  Objeção: Os sinóticos foram redigidos com muita distância do Jesus histórico, cerca de 40-70 anos depois de sua morte, fora da Palestina e em língua grega, ou seja, não na língua materna de Jesus e de seus primeiros seguidores.

Contra-argumentos:

5.1.Tradições individuais e complexos de tradições podem ser datados bem antes do tempo de surgimento dos evangelhos sinóticos.

l  Não apenas unidades “pequenas” (como as transmitidas por Mc e Q), mas também grandes podem ser datadas nos anos 40/50, possivelmente em forma escrita:

a) O “Apocalipse Sinótico” (Mc.13) foi composto no período da crise de Calígula, em 39/40.[8]

b) A narrativa da paixão pode ser datada também dos anos 40.Vários indícios apontam para essa data, como a proteção pelo anonimato de certas pessoas ainda vivas nesse período. Embora as pessoas na narrativa da paixão sejam em geral identificadas com nomes, as duas figuras em conflito com a “polícia” permanecem anônimas: aquele que sacou a espada na prisão de Jesus e o rapaz  que fugiu nu após uma briga (Mc.14.47,51s).[9]

c) A fonte dos ditos espelha na apresentação da tentação de Jesus a superação da crise de Calígula. A imagem dos fariseus em Q enquadra-se melhor no cristianismo judeu da Palestina anterior a 58/62 do que num período posterior.[10]

5.2.Tradições individuais (e complexos de tradições) contém tanto “colorido local” e tantos “indícios de familiaridade” que devem ter surgido na Palestina.

l  Mt.11.7-9: o “caniço agitado pelo vento” citado no dito é, provavelmente uma referência irônica a moedas de Herodes Antipas, nas quais era desenhado um “caniço” e que circulavam apenas em seu reinado.[11]

l  Mc.7.24-30: a história da mulher siro-fenícia é marcada por tensões da região limítrofe entre entre a Galiléia e Tiro.[12]

l  Mc.1.4: o paradoxo do “batismo no deserto” só pode ser compreendido quando se sabe que antes de desaguar no Mar Morto o Jordão corre pelo deserto (e ali tem apenas uma várzea muito estreita).

5.3.A passagem da língua aramaica para a língua grega não foi uma ruptura radical devido à ampla cultura bilíngüe da Síria.

l  Há indícios de que já os primeiros seguidores de Jesus tinham conhecimentos elementares do grego. Um coletor de impostos como Levi não poderia exercer sua profissão sem saber grego. De resto, a transposição de barreiras linguísticas não implica necessariamente perda do sentido original. O Evangelho de Tomé foi escrito originalmente em grego, mas mesmo em sua tradução copta os ditos sinóticos são ainda claramente reconhecíveis.

5.4.Observação:amiúde, na pesquisa neotestamentária, a distância temporal, espacial e linguística entre Jesus e os evangelhos é encurtada por outros caminhos.

l  A tese do “cultivo de tradição” parte do pressuposto de que Jesus teria feito seus discípulos decorar tradições. A tradição teria sido controlada por “autoridades reconhecidas”, de forma que nos foi transmitida de modo amplamente autêntico. (escola escandinava).[13]

l  Outra tentativa de reduzir a distância  é a datação antecipada dos evangelhos (J.A.T.Robinson)[14]  ou sua atribuição a autoridades do cristianismo primitivo (M.Hengel)[15] de acordo com a tradição da Igreja antiga ( o de Lc seria o médico Lucas; o de Mc seria João Marcos).

l  Avaliação: O caminho tomado no “colorido local e história contemporânea” dá continuidade ao estudo da história das formas e da tradição (R.Bultmann/M.Dibelius) e o amplia pela avaliação de “evidências externas” (país, história contemporânea, arqueologia).A tese do “cultivo da tradição” não pode ser confirmada; muitos resultados da exegese histórico-crítica depõem contra a defesa da tradição da Igreja antiga: ela não pode ser levada a cabo de modo nenhum no Evangelho de Mateus, e no de João apenas com conciliações.

6.A intenção da Tradição de Jesus


l  Objeção: A tradição de Jesus fala querigmaticamente para o presente e não está interessada na preservação de recordações históricas.

l  M.Dibelius defendeu em sua Formgeschichte des Euangeliums a tese de que “os missionários do cristianismo primitivo não narravam a vida de Jesus,mas anunciavam a salvação ocorrida em Jesus Cristo”.[16] Aqui, narrar e anunciar são quase opostos. Segundo essa opinião, a tradição sobre Jesus do cristianismo primitivo deve sua existência tão-somente ao “interesse de pregação” orientado para o presente.[17]

Contra-argumentos:

6.1.As tradições sobre Jesus são designadas explicitamente no cristianismo primitivo como “memória”.

l  Em Apol I.67, Justino descreve a leitura da Escritura no culto como leitura em voz alta das a)pomnhmoneu/mata tw=n a)posto/lwn (memórias dos apóstolos).

l  Papias (em Eusébio,HistEccl,3.39.15) referiu-se ao evangelista Marcos como e)rmhneuth/j Petrou= (tradutor de Pedro), o qual registrou as palavras  e ações de Jesus o(sa e)mnhmoneu/sen (como ele as lembrava).

l  Em At.11.16 Pedro se lembra de uma palavra do Senhor: “Então eu me lembrei (e)mnh/sqhn) desta declaração do Senhor: 'João, dizia ele, deu o batismo de água, mas vós recebereis o batismo no Espírito Santo'” (cf.At.20.35).

l  Essa intenção de lembrar-se, claramente atestada nas fontes – como se vê em At.11.26, em que uma palavra sobre o batismo é transferida para Jesus – não prova que um material realmente autêntico de Jesus tenha sido lembrado, mas mostra interesse em manter a história de Jesus na memória.

6.2.Tradições sobre Jesus são organizadas nos evangelhos como memórias: como narrativa biográfica com elementos historicizantes e ofertas de identificação.

l  Os evangelhos pertencem à tradição biográfica da antiguidade: “A biografia helenística...é tão multifacetada, que os evangelhos também têm um lugar nela”[18]. O gênero literário evangélico implica a intenção de narrar sobre um personagem histórico.

l  Todos os evangelhos possuem elementos “historicizantes”, que atuam como sinais distanciadores e mantêm assim a diferença entre o passado e o presente (cf.Mc.2.20)[19]. Em Mc é sobretudo o segredo messiânico, que depois da Páscoa desaparece (cf.Mc.9.9s). Mt faz que Jesus ordene a missão a Israel, a qual é ampliada para missão aos povos (cf.Mt.10.5s,23 e 28.19s.). Em Lc encontra-se no discurso da missão (Lc.10) um radicalismo ético que para o período pós-páscoa é suspenso (Lc.22.35s.).[20]

l  Ao mesmo tempo, todos os evangelhos contêm “ofertas de identificação”: Jesus e seus seguidores são de tal forma apresentados que o leitor pode entrar em seu “papel”. Os discípulos são modelo do discipulado, mas também de fracasso. Jesus oferece um modelo de e)cousi/a (autoridade) de todo cristão, mas também é um modelo de sofrimento. Os “papeis” oferecidos abrangem um espectro amplo, de exaltação e humilhação, de sucesso e fracasso.[21]

l  Não se deve, portanto, jogar o interesse de pregação dos evangelhos contra sua intenção de lembrar. Os evangelhos são narrativas biográficas com sinais distanciadores e ofertas de identificação. Eles querem lembrar para tornar possível a identidade cristã no presente.

6.3.A tradição sobre Jesus está ligada nos evangelhos a afirmações sobre outros personagens, em relação às quais são incontestáveis a intenção de memória histórica e o caráter fatual: João Batista, Herodes Antipas, Pôncio Pilatos. A partir das tradições sobre eles, podem-se fazer analogias com a confiabilidade histórica da tradição de Jesus.

l  Os evangelhos narram sobre João Batista, Antipas e Pilatos com a consciência e a intenção de referir-se a figuras da história real. Josefo também fala dos três no livro 18 das Antiguidades, e Díon Cássio menciona Antipas (55.27.6;59.8.2); Fílon (Leg Gai 302,ver supra p.114) e Tácito (Ann.15.44,ver supra p.102) falam de Pilatos. Dos dois últimos restaram moedas e inscrições. Claro,ao referir-se a esses personagens os evangelhos tinham interesses distintos dos interesses no caso de Jesus. Mas o entrelaçamento da memória de Jesus com essas figuras históricas documenta, por um lado, o objetivo histórico imiscuído em toda narração querigmática; por outro, na medida em que podemos contar com uma historicidade da tradição dos evangelhos no caso de João Batista, Antipas e Pilatos, também podemos pressupor um pano de fundo histórico na tradição de Jesus.

7.Influência do Sitz im Leben


l  Objeção: A tradição de Jesus, como tradição oral, é determinada primariamente por necessidades comunitárias e apenas secundariamente pelo Jesus histórico. Não é Jesus, mas um movimento social que nos fala através das fontes.

l  O ceticismo na história das formas em relação à possibilidade de avaliação histórica da tradição sobre Jesus baseia-se no conhecimento de que os textos são muito determinados pela situação em que foram usados (o chamado Sitz im Leben)[22]. Se a tradição é moldada pelo grupo social que a transmite, falta apenas um pequeno passo para admitir que ela é criação deste grupo, criação comunitária.

Contra-argumentos:

7.1.Nem todas as necessidades comunitárias demonstráveis nas décadas de 30/60 ecoaram na tradição sinótica.

l  A questão da circuncisão, que segundo At.15 e Gl era controversa nos anos 40 na Palestina e na Síria, não é referida nos evangelhos sinóticos com uma palavra sequer (apenas o Evangelho de Tomé 53 tem um dito de Jesus a respeito).

l  Estruturas de autoridade não são legitimadas. Em nenhum lugar uma palavra de Jesus fortalece o poder dos presbu/teroi ou e)pi/skopoi e dia/konoi  (presbíteros, bispos e diáconos), embora isso fosse suficientemente adequado, pois já havia  presbíteros em Jerusalém desde os anos 40 (cf.At.11.30;15.6).

l  Depois da Páscoa, a família de Jesus pertencia à comunidade cristã (At.1.14) e assumiu posições de liderança, em especial Tiago, o irmão do Senhor (Gl.1.19;2.9;At.15.13;21.18ss.).Essa posição especial da família de Jesus não encontrou nenhuma ressonância nos evangelhos canônicos. Pelo contrário, os evangelhos sinóticos falam de conflitos entre Jesus e sua família (Mc.3.20ss.par.); João faz referência à descrença por parte dos irmãos de Jesus (Jo.7.5). Somente no Evangelho de Tomé Tiago ganha destaque (Evangelho de Tomé 12);no Evangelho dos Hebreus é mencionada sua aparição pascal (fragmento 7;ICo.15.7).

7.2.O movimento de Jesus é comparável a movimentos quiliastas, tais como os movimentos encontrados em ex-colônias européias da África e da Ásia, nos séculos XIX e XX. No centro de todos esses movimentos sociais encontra-se uma figura profética marcante.

l  A comparação transcultural entre o movimento de Jesus e outros movimentos quiliastas (ou milenaristas) é possível apenas de forma limitada.[23]Pode-se comparar, em ambos os casos, o choque de uma cultura imperialista com uma nativa que reage a isso com visões de uma grande mudança iminente. Tais movimentos são desencadeados e formados por figuras proféticas carismáticas. Eles marcam bem mais os movimentos do que estes a imagem do carismático. A situação deve ter sido semelhante no caso da relação entre Jesus e o movimento de Jesus. Nesse ponto, a abordagem sociológica, que tanto colaborou para o ceticismo histórico acerca da tradição de Jesus, encoraja-nos a perguntar pelo Jesus histórico. Ou seja, quem foi, pois, a figura profética carismática que desencadeou e formou o movimento de Jesus? Portanto, do ponto de vista sociológico, precisamos acessar o Jesus histórico se quisermos compreender o movimento de Jesus, como já dito, desencadeado, formado e marcado por ele.

l  Isso é também mostrado pela consideração seguinte:

7.3.Parte da tradição sinótica de ditos não corresponde às necessidades das comunidades locais, mas dos peregrinos carismáticos do cristianismo primitivo, que deram seguimento ao estilo de vida de Jesus e em seu Espírito transmitiram e recriaram seus ditos.

l  A ruptura entre o Jesus histórico e o cristianismo primitivo foi reforçada na pesquisa neotestamentária pela suposição tácita de que Jesus, como “pregador itinerante”, e as “comunidades locais” do cristianismo primitivo tinham um Sitz im Leben totalmente distinto.

l  A tese dos “carismáticos peregrinos” cria um continuum sociológico entre Jesus e o cristianismo primitivo.[24] Esse carismatismo peregrino está por trás das tradições de ditos da Fonte dos Ditos (Q) e do Evangelho de Tomé, enquanto os evangelhos sinóticos reelaboram essas tradições radicais para o uso das comunidades locais.

8. O poder criador da prova da Escritura


l  Objeção: Os primeiros cristãos não só interpretaram as memórias de Jesus à luz do AT, como também amiúde as produziram pela primeira vez. As Escrituras Sagradas de Israel eram para eles, como testemunho divino, mais confiáveis que o testemunho de testemunhas oculares humanas.

l  O poder criador da prova da Escritura pode ser demonstrado pelas interpretações equivocadas do parallelismus membrorum.O que na poesia hebraica é uma descrição variada do mesmo fato é ás vezes dividido no Novo Testamento como duas ações:

Zc 9.9 descreve a entrada do rei messiânico “montado num jumento, num jumentinho, filhote de jumenta”. O texto refere-se a apenas um animal (como também Jo 12.13s.). Mt o transforma em dois, falando em 21.7 de “uma jumenta e um jumentinho”sobre os quais os discípulos colocavam suas vestes. Fala-se dos animais no plural (e)p au)tw=n).

l  Em Sl.22.19 o justo sofredor lamenta: “Repartem entre si minhas vestes e sorteiam minha roupa”. Trata-se aqui de um processo (como em Mc.15.24).Já o Evangelho de Pedro o transforma em dois atos (Pd 12),o Evangelho de João o relaciona a objetos distintos: as vestes são repartidas, a túnica sorteada. Isto é tornado plausível (secundariamente) pelo fato de a túnica ser sem costura, não podendo então ser repartida (Jo 19.23s.).

l  Se a avaliação do Antigo Testamento comprovadamente ajudou a formar a realidade narrada, deve-se contar então com a possibilidade de que o AT não produziu apenas detalhes do evento, mas o próprio evento.

Contra-argumentos:

8.1.O Antigo Testamento foi empregado produtivamente pelos primeiros cristãos porque ele os ajudava a dar sentido a fatos existentes (e às vezes escandalosos) como: a execução de Jesus, a fuga dos discípulos, mas também a purificação do Templo e a origem de Jesus na Galiléia. A interpretação do Antigo Testamento pressupõe um acontecimento a ser interpretado.

l  A seguir veremos citações da Escritura que não produziram o acontecimento interpretado, mas o mostraram sob nova luz:

l  Zc.13.7: “Vou ferir o pastor, e as ovelhas dispersarei” é interpretado em Mc.14.27s em relação à fuga dos discípulos. Essa fuga oferece uma figura desfavorável dos discípulos e por isso é seguramente um evento histórico, e não inventado.

l  Is.53.12 é citado em Lc.22.37: “Eles o contaram entre os criminosos”. Mas isso não significa que a crucifixão de Jesus entre dois “ladrões” é a-histórica, assim como não o são as suspeitas sobre ele que o queriam ver como um criminoso violento. A proximidade de Jesus com tais criminosos era,antes,escandalosa. Esta citação ajuda a abrandar o escândalo.

l  Is.56.7 interpreta a purificação do Templo: “Minha casa será uma casa de oração para todos os povos”. A purificação do Templo e a ação violenta de Jesus contra os mercadores no Templo pressuposta nela certamente não derivam desta passagem. Isso contradiz a imagem “pacífica e amável” de Jesus e é por isso histórica.

l  Is.8.23-9.1 profetiza que surgirá uma luz para a Galiléia dos gentios, legitimando assim a origem de Jesus na Galiléia – na interpretação de Mt.4.12-16.Ela não era uma recomendação (cf.Jo.7.52;1.46): A origem de Jesus certamente não é extraída dessa  citação da Escritura.

l  Inversamente, é espantoso o fato de alguns motivos do Antigo Testamento não terem sido aproveitados. O Salmo 22 permeia a narrativa da paixão (cf.Mc.15.24 = Sl.22.19;Mc.15.29 = Sl.22.8;Mc.15.34 = Sl.22.2).O versículo 17 diz: “Perfuraram-me (LXX: abriram cavando) as mãos e os pés...” Apesar de a crucifixão de Jesus já cedo ter sido imaginada como um perfurar de mãos e pés (registro mais antigo: Jo 20.25 para as mãos,Lc.24.39s.talvez indiretamente para mãos e pés),o Sl.22.17 é usado apenas muito depois para a interpretação da crucificação (cf.Justino,Dial.97.3).A descoberta do homem crucificado em Give'at ha-Mivtar, em 1968,tornou historicamente provável que Jesus tenha sido crucificado com pregos.

8.2.Jesus e seus discípulos viviam em sua Bíblia. Não se pode excluir  a possibilidade de que concordâncias entre o Antigo Testamento e a história transmitida efetuaram-se por meio de um “cumprimento” deliberado da Escritura por parte do próprio Jesus.

l  Jamais será possível esclarecer totalmente se Zc.9.9 é uma interpretação posterior da entrada de Jesus em Jerusalém, ou se o próprio Jesus histórico foi norteado pela imagem do “rei” montado num jumentinho (que não é chamado de “messias” em Zc.9.9!).

l  No caso de João Batista, é possível que Is.40.3 não seja apenas uma interpretação posterior de sua permanência no deserto, mas tenha motivado esta última. Também em Qumran, Is.40.3 fundamenta a permanência da comunidade no deserto (cf.1QS VIII.12-14).

l  No caso de Jesus, até hoje não foi realmente demonstrado algo comparável. Amiúde se defende a opinião de que ele compreendia a si mesmo como cumprimento da profecia de Isaías -como mensageiro escatológico da paz.

8.3.Pode-se fazer uma clara distinção entre o poder de reinterpretação da prova da Escritura na narrativa da Paixão e seu poder produtivo na narrativa da infância. Na narrativa de infância de Jesus devia-se suprir um “déficit de informação”, e na execução de Jesus “déficit de sentido”.

l  A força produtiva da prova da Escritura é inconfundível na narrativa da infância em Mt. O nascimento virginal desenvolveu-se a partir de Is.7.14 LXX (Mt.1.23), o nascimento em Belém a partir de Mq 5.1ss. (Mt.2.6),a estada no Egito a partir de Os.11.1 (Mt.2.15),etc. Tudo isso se organiza em torno de alguns dados prévios, como: nascimento perto do término do governo de Herodes, o nome dos pais, sua origem em Nazaré.

l  Já na narrativa da Paixão a prova da Escritura lida com fatos históricos “escandalosos” (1Co 1.23). Inicialmente, 1Co.15.3ss. Relaciona o postulado de estar de acordo com a Escritura apenas à paixão (cf.Lc.24.26s,44). O fato da execução já estava dado, apenas as circunstâncias mais precisas poderiam ser “preenchidas” aqui pelo AT. Desse modo, não podemos tirar conclusões para o conjunto da tradição sobre Jesus a partir do indiscutível poder produtivo da prova da Escritura.

9. A formação de analogias


Objeção: A tradição de Jesus existe na forma típica de pequenas unidades. As estruturas de gênero nelas reconhecíveis permitem a formação de analogias. Isto torna impossível a distinção entre formações autênticas e secundárias.

l  A clássica história das formas ligou o reconhecimento de estruturas formais típicas a um Sitz im Leben determinado. Não há, no entanto, uma relação de dependência clara entre um gênero e a situação social em que ele foi usado. O mesmo gênero pode ser empregado em diferentes situações. Paulo usa de novo as palavras de instituição no contexto de uma parênese comunitária! Inversamente, diferentes gêneros podem ter o mesmo Sitz im leben. Dessa forma, a força produtiva dos gêneros pode ser conceitualmente distinguida da força produtiva da “comunidade”, ainda que ambas estejam intimamente interligadas.

l  Sem dúvida houve formação de analogias com a tradição de Jesus. Será que elas não tornam o Jesus Histórico irreconhecível para nós?

Contra-argumentos:

9.1.Mesmo que deva permanecer incerto se ditos individuais podem ser atribuídos a Jesus, conhecemos, com alta probabilidade, a “linguagem das formas” de Jesus.[25]

l  Na maioria das formas da tradição de Jesus, há pelo menos um dito que pode ser considerado autêntico – e isso demonstra a “forma” toda para Jesus.[26]

l  É bastante certo que Jesus tenha pronunciado advertências sapienciais e provérbios, macarismos e lamentos, ditos sobre o Reino de Deus e sobre o Juízo, mandamentos para os discípulos (chamados ao discipulado), ditos legais e, provavelmente, também antíteses. Além disso, há diferentes tipos de parábolas.Controversos são sobretudo os ditos na primeira pessoa.[27]

9.2.Muitas formas da tradição de Jesus assumem diferentes formas literárias anteriores, mas Jesus lhes dá um novo acento que só pode se remeter a ele.

l  Admonições são, na maioria das vezes, formuladas no plural (o que alhures só ocorre nos convites da sabedoria).[28]

l  Macarismos foram transformados em antimacarismos (Bem-aventurados os pobres...).

l  Parábolas não foram contadas para ilustrar textos da Escritura, mas são evidentes em si mesmas. Jesus faz uso distinto das parábolas!

l  Nos ditos proféticos falta o “eu de identificação”, com o qual o profeta entra no lugar de Yahweh.[29]

l  Por conseguinte, não apenas podemos atribuir formas individuais a Jesus, como reconhecemos em sua forma o poder que ele tem de moldá-las.

9.3.A combinação de formas presentes na tradição de Jesus é singular, embora também possa haver algumas analogias que iluminam gêneros e formas individuais. A totalidade da linguagem das formas de Jesus permite reconhecer claramente sua individualidade.

l  É muito difícil provar singularidade em História. Quanto mais complexo é um objeto, tanto maior é a chance de encontrar algo singular. Na tradição de Jesus, há combinações improváveis de formas, principalmente a combinação de narrativas de milagres (na tradição narrativa) com ditos profético-apocalípticos (na tradição de ditos):  assim, o reino eminente de Deus iminente (basilei/a) realiza-se em curas e exorcismos no presente.

l  A seguir trataremos tradição dos ditos e tradição narrativa separadamente. Uma diferença importante é que as narrativas sobre Jesus são sempre narrativas de outros sobre ele. As estruturas do gênero literário provêm dos discípulos, das comunidades ou do povo. Já as estruturas de gênero na tradição de ditos podem provir do próprio Jesus. (a tradição de ditos de Jesus, portanto, teria mais chance de ser autêntica que a tradição narrativa, nesse caso).

10.A tradição dos ditos como fruto da profecia do cristianismo primitivo


Objeção: A tradição dos ditos contém ditos de profetas cristãos primitivos que eram proferidos em nome do exaltado e não podem mais ser distinguidos das palavras do Jesus terreno.[30]

Contra-argumentos:

10.1.Os ditos de profetas do cristianismo primitivo encontrados distinguem-se dos de Jesus por meio de um e)gw\-divinum de identificação.

l  O “eu” divino é corrente no Antigo Testamento; cf., por exemplo, Am.3.1-2: “Escutai esta palavra que o SENHOR pronuncia contra vós, filhos de Israel, contra toda a família que eu fiz subir da terra do Egito: Só a vós eu conheci, entre todas as famílias da terra; por isso pedirei contas a vós de todas as vossas iniqüidades”. Este “eu”, no qual fala um sujeito divino sem limitações humanas, é raro na tradição sinótica,p.ex.:

Numa citação do AT: “Eis que eu envio meu mensageiro diante de ti” (Mt.11.10 = Ex.23.20/Ml.3.1).

Num dito de sophia: “Foi por isso que a própria sabedoria de Deus disse: eu lhes enviarei profetas e apóstolos” (Lc.11.49 par.Mt.23.34).

Num consolo: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles” (Mt.18.20).

l  Esse mesmo  e)gw\-divinum é característico da profecia do cristianismo primitivo:

l  Pseudoprofetas reivindicam autoridade ao entrar em cena com as palavras e)gw\ ei)mi/ (eu sou) (Mc.13.6).

l  As cartas do Apocalipse (2-3) empregam-no com frequência, p.ex.:“Conheço tuas obras, teu labor, tua perseverança...Mas tenho contra ti...” (2.2,4).

l  Profetas montanistas pronunciaram: “Nem um anjo, nem um enviado, mas eu, o Senhor, Deus, Pai, cheguei” (Epifâneo,Pan 48.11.9).

l  Essa forma linguística também foi transmitida por (talvez) profetas não-cristãos. Celso narra:

“A um deles era comum dizer: Eu sou Deus ou o Filho de Deus ou um Espírito divino. Eu cheguei, pois o mundo está passando...Eu vos quero salvar, vós me vereis voltar com poder celestial...”.[31]

l  O estilo específico em primeira pessoa dos diálogos de revelação joaninos podem ser explicados assim: os profetas cristãos primitivos falaram em nome do exaltado.[32]

l  No entanto, como esse estilo em primeira pessoa tão característico da profecia do cristianismo primitivo está presente nos sinóticos, mas apenas de forma limitada, pode-se supor que a influência desses profetas não é decisiva na tradição de ditos. Não se questiona que ele tenha acontecido em algumas passagens, como p.ex. na ordem de missão do ressurrecto em Mt.28.18-20: “Toda autoridade me foi dada no céu e sobre a terra...” e na palavra de consolo, citada acima, de Mt.18.20: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles”.     






[1] THEISSEN,Gerd;MERZ,Annete.O Jesus Histórico:um manual.São Paulo:Loyola,2004.2ª Edição. pg.111ss.
[2] Kritik der euangelischen Geschichte der Synoptiker,3 vols.,1841-1842;Kritik der Euangelien,1850-1851.
[3]    Das Christusproblem,Grundlinien einer Sozialtheologie,1902.
[4]    Die Christusmythe,1909/1911.
[5]    Hipótese:Fílon pode não ter feito menção de Jesus em seu quadro negativo de Pilatos quiçá por saber que a execução do mesmo sob sua autoridade foi, ainda assim, contra sua vontade, assim como relatam os Evangelhos canônicos. Em outras palavras, o caso de Jesus não seria útil à imagem grotesca de Pilatos pintada por Fílon de Alexandria (?).
[6]    A ideia de um “Cristo crucificado” de fato escandalizaria os judeus, cuja expectativa messiânica era triunfalista; portanto, a plausibilidade histórica desse dado paulino é grande, pois além de ter sido natural e possível tal escândalo, ele não poderia ter sido inventado, uma vez que não contribuiria em nada na aceitação do Evangelho por parte dos judeus ou dos gentios, tornando-se mais, isso sim, um obstáculo, como o próprio Paulo pondera aos coríntios. Isto torna o evento de um pretensioso messias executado e derrotado bastante provável do ponto de vista histórico. Curiosamente, os interlocutores dessa mensagem cristã do messias executado pelos homens não fazem objeção ao evento histórico, se aconteceu ou não, mas apenas ao seu conteúdo e proposta: “escândalo para os judeus, e loucura para os gentios” (ICo.1.23). A  informação paulina sobre o escândalo dos judeus, então, ante a execução do suposto Cristo pode ser uma evidência a mais em favor da historicidade desse evento.
[7]    Cf.Jo 2.19 = Mc.14.58 par.;3.3 = Mt.18.3;4.44 = Mc.6.4 par.; 13.20 = Lc.10.16/Mt.10.40; 13.16 e 15.20 = Mt.10.24; 15.7b = Mc.11.24 par.; 16.32 = Mc.14.27 par.; 18.11 = Mc.14.36 par.;20.23 = Mt.18.18.
[8]    Assim já G.Hölscher, “Ursprung”.Também G.Theissen,Lokalkolorit*,133-176.
[9]    Cf.com mais detalhes G.Theissen,Lokalkolorit*,133-176.
[10]  Cf.com mais detalhes id.,ibid.,212-245.
[11]  Cf.com mais detalhes id.,ibid.,26-44.
[12]  Cf. com mais detalhes id.,ibid.,63-85.
[13]  São representantes dessa escola: H.Riensenfeld,Gospel Tradition; B.Gerhardson, Memory. Semelhantemente na Alemanha,R.Riesner,Jesus.
[14]  J.A.T.Robinson,Redating.
[15]  M.Hengel,Geschichtsschreibung.
[16]  FG* 1919,6s.;2ª edição,1933,14.
[17]  O anúncio do cristianismo primitivo é “propaganda” para a fé (id.,1919,15;2ª edição,1933,34).
[18]  K.Berger,Formgeschichte*,346.
[19]  Além disso, tradições que historicamente são claramente “ultrapassadas” foram transmitidas, por exemplo o dito de Jesus sobre o juramento pelo templo (Mt.23.16ss.)
[20]  Os elementos historicizantes dos evangelhos sinóticos são pesquisados por J.Roloff,Kerygma.
[21]  A historiografia antiga tinha o objetivo consciente de oferecer ao leitor possibilidades de identificação. Cf.Plutarco em sua introdução à história de Alexandre: “Não escrevo história, desenho imagens da vida;o mérito excelente ou repreensibilidade não se manifestam sempre nas ações admiráveis...” (Alex 1).
[22]  No entanto se exige um “ceticismo acerca do ceticismo”,na medida em que não podemos determinar essas situações de uso de modo tão claro como gostaríamos.
[23]  Cf.,em relação a esses movimentos,W.E.Mühlmann,Chiliasmus und Nativismus, Berlin, 1961, 2a. ed.1964;V.Lanternari,Religiöse Freiheits-und Heilsbewegungen unterdrückter Völker, Neuwied,1968.
[24]  Cf.G.Theissen, “Wanderradikalismus”*;S.J.Patterson,Gospel.
[25]  Nós conhecemos, para empregar a terminologia de Saussure, a “langue” de Jesus, mas nem sempre sua “parole”.
[26]  Mesmo R.Bultmann, GST*, passim, que é tão cético em relação à autenticidade  das tradições  chega  a essa conclusão.
[27]  Ver infra objeção 10.
[28]  Cf.D.Zeller,Mahnsprüche,em especial pp.77-143.170-172.
[29]  Ver infra objeção 10.
[30]  Esta tese é defendida antes de tudo por E.M.Boring,Sayings.
[31]  Orígenes,Cels VII.9,citado segundo NTApo 2,579.
[32]  Cf.E.M.Boring,Influence.